2009-06-29

no inicio, não gostava da esquadra.

A árvore do jardim em frente, de mãos dadas com o parapeito da janela do meu quarto, sempre me acompanhou nas altas conversas de madrugada, enquanto o polícia olha para mim, perplexo, vendo-me a falar com uma ternura e uma firmeza quase raras nas madrugadas que pairam sobre os seus anos de serviço. Uma vez, nessas conversas que pairam nos meus jovens anos, falei com a árvore sobre o polícia, do qual sei de cor o cabelo grisalho visto de cima, nas tristes insónias em vésperas de acontecimentos que na altura me passavam ao lado. Tem cara de quem ama, o meu polícia. Às vezes desejo que ele saiba de cor a minha camisa de dormir enfadonha, vista de baixo. Às vezes espero por ele nas vésperas de acontecimentos que agora me põem ansiosa, como que esperando o despertar da árvore que me traz os sonhos. Querida árvore. Lê-me tão bem, ela. Sabe-me como sabe do polícia, com a farda que sabe de cor, vista do alto dos seus ramos fortes, que me embalam em madrugadas despertas. Falamos tanto, nós as duas. Às vezes pressinto que o polícia, o nosso polícia, nos ouve como quem desvenda a letra de uma canção. Porque eu e a árvore sabemos de coisas que nunca ninguém teve a esperança de saber. E eu gosto do polícia, que há tantos anos de serviço me vê no mesmo parapeito, debruçada sobre o mundo que já quase descortinei. Não me importava que ele soubesse das coisas que nós sabemos, quando olhamos a paisagem, a mesma de sempre, nas madrugadas por esquecer. Caminhamos lado a lado, estando fartas de ser prisioneiras do mesmo chão, que tantas vezes nos levou a melhor. Arranco-lhe as raízes, e ela dá-me a mão e tira-me do parapeito, do alto das suas folhas grandes e majestosas. Voamos lado a lado, atentando no chão que levamos a melhor, agora. Eu e a árvore, às vezes o nosso polícia.

2009-06-14

ontem, hoje e amanhã.

E hoje, hoje eu tenho tanta coisa para dizer. Voltei à plenitude que o turbilhão de emoções e revelações me roubou. Já ouço todas as vozes que me compreendem como ninguém naquilo que dizem ser complicações. Agora que as ouço, tenho todas as ideias disponíveis para desbloquear as sensações que me têm feito tanta falta. Porque hoje, hoje eu vi tudo com os olhos mais diferentes que poderia alguma vez vir a ter. Hoje atirei-me com força a alguém que se calhar nem é o meu objectivo. Hoje senti o mar, senti a sua sabedoria, percebi que por mais que nos fujam todas as coisas que nos mantém agarrados à Terra, à sempre qualquer coisa que fica, que segura os nossos pés o mais firme possível no chão. Os nossos pés. Porque pode ir tudo, mas nós não vamos. E nós vamos sempre ter alguém, eu vou sempre ter-me a mim. Hoje vi um cão perdido à procura do dono. E vi a esperança. Esperança que tenho perdido nos últimos dias, mas que o cão me devolveu. Fiquei triste por ele. Afoguei essa pseudo-tristeza nas ondas que me davam generosamente gotas de água que não encontro em parte alguma, mas que elas me dão. E quando emergi novamente da espuma, o cão encontrou o dono. Hoje enrolei-me na areia e senti o seu toque áspero que me devolveu toda a minha realidade. Senti-me Margarida novamente, e disse olá ao céu. Mas a Bia não se foi embora. E agora sim, estou tão plena e alegre, que voltei a ter tudo para dizer. E voltei também a dispensar todas as palavras que me bombardeiam, para apenas sorrir.

2009-06-11

fui

hoje, as palavras correm duma maneira inigualável. e eu não sei, se sou eu se és tu, ou vocês aí, que mas fazem fluir desta forma que não antes vi. sei que correm. mas não saem.
correm as palavras, as lágrimas e as recordações de tempos que já não são os meus. já o foram. "no meu tempo". no meu tempo era tudo muito bonito. tinha amigos. amigos, as tardes que passámos juntos. as memórias permanecem, há pontes de ligação. os mesmos quatro velhos nos mesmo dois bancos à beira da estrada onde passámos e passamos, a pé, no carro. o carro não era sempre o mesmo, variava consoante o número de viajantes ou a vontade que tinhamos de ir juntos no caminho, mais uns quantos minutos na alegria sensaborona que partilhámos vezes sem conta. às vezes eramos muitos dentro do carro. eu costumava ir ao colo nessas vezes, por ser a mais pequenina. ainda sou, pelo menos isso ficou. mas vocês cresceram. meu Deus, como cresceram. tenho orgulho em vocês, meus pequeninos, que já são homens capazes de provar da sensibilidade das mulheres, quase que vossas. provam da minha, provam-na como ninguém. é escusado, eu sei que sim. habituaram-se a prová-la e sentem-lhe o cheiro à distância, mesmo que escondido por entre rasgos de loucura falsificada. e tinha também algumas das agora mulheres, quase que vossas, quando bastavam beijinhos e mãos dadas para me iluminarem a alma, como que por magia, daquela onde os truques não são nunca revelados. tinha conversas das complicadas, onde havia tempo, paz e compreensão suficientes para me poder perder e me ver como me viam a mim, por entre essas conversas paralelas a nós.
e hoje, os tempos mudaram. os tempos, as vontades. a esperança. a esperança que só morre quando morremos também. mas que se morrer parte de nós, uma parte só nossa, e não, não falo de pessoas que são parte de nós. falo de partes de nós. partes. se morrem, a esperança que nela se escondia morre também. eu nunca havia visto essa esperança. mas quando ela morreu, morri eu também.

2009-06-07

a luta continua #1

- acho que se comesse alguém hoje, só mesmo para me sentir, isto se ia resolver tudo.
- quê, esta maneira de estar assim sempre falsamente alegre e desvairada, com vaipes de lucidez em que realmente se vê o interior?
- exacto.
- não sei se me apetece enfiar a lingua na goela de alguém hoje, está?
- pois, isso vai muito contra mim.
- claro, enquanto estou assim, sem sentir nenhum aperto no coração, ou até uma ligeira acelaração do batimento, o melhor é mesmo seguir a risca os principios. é que não, não faz sentido.
- se não me agarrar aos principios não me agarro a nada, porque duvido que comer alguém vá resolver alguma coisa!
- opá, o melhor é estar quietinha.
- até me dar um ataque de choro à frente desta gente toda.
- era só mais uma no meio desta rebaldaria toda. não gosto disto, quero-me ir embora.
- e eu.
- e eu.
- olha, fica quietinha, é mesmo o melhor. comer alguém não vai ajudar, é um ponto sem retorno. ou a fama ou a revelação, não quero escolher nenhuma. prefiro então o ataque de choro. sempre posso fingir que estou bebeda, e ir no comboio. pode sempre levar-me a algum lado, não é? mas não quero paragens desconhecidas. a esta hora, neste sitio, tresandam a alcool com toda a certeza. conhecidas ainda menos. era o bilhete de ida, ó se era!
- acho que é a primeira vez que concordo contigo, em toda a nossa existência.
- eu concordo com as duas, e desta vez não há desempates, obrigadinha.

diálogo interior na madrugada