quero gritar devagarinho. quero gritar devagarinho porque eu mil e quinhentos gritos separados pela mesma dor, e se mil e quinhentos gritos todos separados saíssem pela minha garganta, eu, carne e coração a menos, pó. e o pó não grita. faz atchins separados todos pela mesa comichão, e eu, então, uma doença infernal e incurável de anomalias todas separadas pela mesma dor. quero gritar devagar porque assim talvez possa voltar a ser uma unidade como as crónicas de Lobo Antunes não sei em que lugar no mundo, eu que já nem gosto da chuva que me molha e não me deixa olhar em frente por causa dos óculos. quero gritar devagar porque pode ser que assim talvez possa voltar a ter voz nos dedos, mas as minhas unhas, essas, roxas e afónicas do frio que me anestesia a única coisa que eu, asseguradamente, tenho: dedos dos pés. assim, calo-me. odeio-te em silêncio por me encaracolares o cabelo (eu sempre tão lisa e sedosa), mato com os olhos as aranhas nas escadas mais escuras e represento-te a mímica mais perfeita e plástica que possas ver, danço sozinha e no escuro os passos que aprendi, conformada, no outro dia (porquê tantos adjectivos entre vírgulas?), e toco apaixonadamente estátuas de pedra mais fria que a minha mão esquerda, mil e quinhentos bocejos todos juntos. já não gosto de àgua clara do céu, perdi os meus anos, os bocejos pegam-se-me sempre e vou-me embora. caladinha.
3 comentários:
Há alturas em que ficar calada também é gritar. Compreendo-te M. *
'vou-me embora. caladinha.' e pronto, cá fico eu a apaixonar-me pelos teus textos.
olha, ele que meta a cumplicidade onde quiser. é um amigo mesmo parvalhão, quando quer.
quero gritar devagar porque pode ser que assim talvez possa voltar a ter voz nos dedos, mas as minhas unhas, essas, roxas e afónicas do frio que me anestesia a única coisa que eu, asseguradamente, tenho: dedos dos pés.
falta-me a minha voz nos dedos também.
literatura? que bonito :) so conheço uma pessoa que tem, e é realmente interessante :)
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